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a privatização e os desafios da gestão pública


Opinião

A concessão de energia elétrica em São Paulo, atualmente nas mãos da multinacional italiana Enel, está no centro de uma disputa política e social de grande proporção. A crise energética que assolou a cidade após o temporal do último dia 11 de outubro, deixando mais de 1,5 milhão de domicílios sem eletricidade, evidenciou falhas graves na prestação do serviço e reacendeu o debate sobre a eficácia da privatização de serviços públicos essenciais. Em meio ao apagão, a paciência dos moradores atingiu o limite, e as críticas à concessionária e ao modelo de gestão privatizado se intensificaram.

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Atualmente, mais de 250 mil imóveis permanecem sem energia na região metropolitana, com bairros inteiros de São Paulo enfrentando dias de incerteza. A situação gerou protestos em diversas localidades, como São Bernardo do Campo e zonas da periferia da capital, onde moradores bloquearam vias em demonstração de indignação pela demora na restauração da energia elétrica.

Comerciantes e empresários contabilizam prejuízos bilionários, com estimativas da Fecomercio apontando perdas de R$ 1,65 bilhão em apenas três dias. Hotéis, bares e restaurantes, que dependem de um fornecimento estável de eletricidade, relatam perdas severas. Um exemplo foi o restaurante Praça de Minas, que teve um prejuízo de R$ 80 mil em produtos perecíveis.

Essa crise, no entanto, vai muito além de uma falha operacional causada por um evento climático severo. Ela é o reflexo de um problema estrutural que vem se desenrolando há anos e que expõe a fragilidade do modelo de concessão privada.

Desde que a Enel assumiu a distribuição de energia em São Paulo, o serviço tem sido alvo de inúmeras reclamações e investigações por parte das autoridades, como o Tribunal de Contas do Município (TCM-SP), que já apontou “graves falhas” nos investimentos e na qualidade do atendimento. Além disso, a Enel acumula multas milionárias aplicadas pela Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), algumas das quais ainda pendentes de pagamento devido a batalhas judiciais. Desde 2018, a empresa recebeu R$ 320 milhões em multas, o que evidencia um histórico contínuo de problemas na prestação do serviço.

Diante desse cenário, surgem questionamentos fundamentais: até que ponto a privatização de serviços públicos essenciais, como o fornecimento de energia elétrica, é uma solução viável? A experiência recente em São Paulo sugere que a privatização, quando mal regulada e sem um acompanhamento rigoroso, pode agravar problemas que já são inerentes à gestão pública. A lógica da eficiência que fundamenta a defesa das privatizações, sobretudo com a promessa de melhores investimentos e agilidade, nem sempre se concretiza na prática, como se observa no caso da Enel.

Possibilidade de rompimento de contrato

O prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), foi um dos primeiros a levantar a possibilidade de rompimento do contrato de concessão com a Enel. Ele sugeriu que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) poderia intervir e encerrar o contrato, em uma espécie de encampação dos serviços. Porém, o professor Antônio Cecílio Moreira Pires, advogado e chefe do núcleo de direito administrativo e ambiental da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, explica que a questão é muito mais complexa que uma simples “canetada”. O

professor ressalta que, “afora a intervenção, em razão de prestação de serviço público inadequado, parece-nos que seria o caso de rescindir o contrato de concessão, mediante declaração de caducidade, que se constitui em procedimento complexo, observado o devido processo legal”.

Há precedentes no Brasil de rompimento de contratos de concessão de energia. Um caso emblemático ocorreu no Amapá, onde a Aneel recomendou a caducidade da concessão da Companhia Energética do Amapá em 2007. Outro caso recente envolve a Amazonas Energia, que em 2023 também foi alvo de uma recomendação da Aneel para caducidade, devido a problemas financeiros e incapacidade de gerir recursos. No entanto, esses processos são extremamente lentos e onerosos para a União, com estimativas de que o rompimento do contrato da Amazonas Energia custaria aos cofres públicos R$ 2,7 bilhões.

Spacca

Assim, a situação de São Paulo levanta a questão: mesmo que o contrato com a Enel vá até 2028, é possível que uma eventual abertura de um processo de caducidade termine muito perto da data de vencimento do acordo, tornando o rompimento menos eficaz. E, nesse contexto, cabe perguntar se a solução ideal seria a reestatização do serviço ou uma revisão completa das condições de concessão e fiscalização por parte das agências reguladoras.

Aneel investiga falhas em serviço

A Aneel, por sua vez, afirma estar conduzindo uma “apuração rigorosa e técnica” sobre a atuação da Enel em São Paulo, mas a população continua a sofrer com as consequências de um serviço falho.

O Procon já notificou a empresa e, se as explicações forem insatisfatórias, a Enel pode enfrentar multas de até R$ 12 milhões. Além disso, o Ministério Público e a Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo (Arsesp) também abriram investigações para apurar possíveis irregularidades e omissões por parte da concessionária.

A crise atual expõe, mais uma vez, os dilemas de se confiar a empresas privadas a gestão de serviços que são essenciais para a sociedade. A experiência com a Enel levanta sérias dúvidas sobre a capacidade de empresas estrangeiras em gerir de maneira eficiente setores estratégicos, como o de energia, em países com complexidades geográficas e climáticas como o Brasil.

Por fim, a situação atual coloca em xeque a narrativa de que a privatização de serviços públicos, em especial no Brasil, seria sempre sinônimo de modernização e eficiência. Enquanto as autoridades e a própria Enel debatem responsabilidades, a população paulista segue sem respostas claras e, mais importante, sem energia. O modelo de concessão precisa de uma revisão urgente, com mais transparência, fiscalização rigorosa e punições adequadas para evitar que crises como essa se repitam.

A reflexão que se impõe, portanto, é se a privatização da infraestrutura de serviços essenciais, como a energia, realmente beneficia a população ou se, ao contrário, coloca os interesses financeiros acima das necessidades básicas de milhões de brasileiros.




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