Afastamento de aplicação de decreto no Carf por ilegalidade
Nesta semana, trataremos da controvérsia relativa ao afastamento de aplicação de decreto no processo administrativo tributário sob fundamento de ilegalidade, questão que surgiu com a instituição do atual Regimento Interno do Carf.
Spacca
Ao regular o processo administrativo fiscal, o artigo 26-A do Decreto nº 70.235/72 determinou que: “no âmbito do processo administrativo fiscal, fica vedado aos órgãos de julgamento afastar a aplicação ou deixar de observar tratado, acordo internacional, lei ou decreto, sob fundamento de inconstitucionalidade”.
Tal dispositivo legal é de fundamental importância, uma vez que o controle de constitucionalidade de leis se dá no Brasil tão somente no âmbito do Poder Judiciário, seja por meio do controle difuso, seja por meio do controle concentrado.
Não cabe assim a um órgão do Poder Executivo, tais quais os órgãos de revisão de lançamento tributário, fazer o controle de constitucionalidade de uma lei.
A impossibilidade de afastamento de lei sob fundamento de inconstitucionalidade constava expressamente nos regimentos internos do Carf. A título de ilustração, o regimento instituído pela Portaria MF nº 343/15, que vigorou entre 2015 a 2023, estabelecia em seu artigo 62 que:
“Fica vedado aos membros das turmas de julgamento do Carf afastar a aplicação ou deixar de observar tratado, acordo internacional, lei ou decreto, sob fundamento de inconstitucionalidade.”
Nessa linha, inclusive dispõe a Súmula Carf nº 2 no sentido de que: “o Carf não é competente para se pronunciar sobre a inconstitucionalidade de lei tributária”.
Ocorre que tal tradicional afastamento de aplicação de lei sofreu uma ampliação com a publicação do atual Regimento Interno do Carf em dezembro de 2023, por meio da Portaria MF nº 1.364/23.
Segundo o artigo 98 do atual Regimento Interno do Carf: “fica vedado aos membros das Turmas de julgamento do Carf afastar a aplicação ou deixar de observar tratado, acordo internacional, lei ou decreto”.
Assim, diferentemente do artigo 26-A do Decreto nº 70.235/72 e do artigo 62 do antigo Ricarf, foi suprimida a expressão “sob fundamento de inconstitucionalidade” no artigo que cuida do mesmo tema no atual Ricarf, isto é, o artigo 98.
Em que pese tal alteração normativa específica possa ter decorrido de um esquecimento, julgo fundamental que o artigo 98 do atual Ricarf seja revisto, de modo a abranger a expressão “sob fundamento de inconstitucionalidade”, sob pena de desvirtuamento da própria função do Carf.
Ao tratar sobre a função e os principais aspectos do processo administrativo em sentido lato, Celso Antônio Bandeira de Mello assevera que o processo administrativo é meio de garantia dos administrados ante as prerrogativas públicas [1].
Finalidades
Desse modo, o referido autor aponta que o processo administrativo possui as seguintes finalidades: (i) resguardar os direitos dos administrados frente ao poder estatal, garantindo a possibilidade de que o administrado seja ouvido antes do proferimento da decisão que o afeta; e (ii) permitir uma atuação administrativa mais bem fundamentada e responsável, uma vez que a Administração tomará as suas decisões com base também em informações trazidas pelos administrados [2].
Embora o processo administrativo tenha sido objeto de diversas leis esparsas nos âmbitos de cada um dos entes federados, merece realce a edição da Lei nº 9.784/99, que teve por finalidade consolidar e regular o processo administrativo na seara federal.
O intento da referida lei se mostra expresso em seu artigo 1º, que dispõe que se trata de norma de proteção dos direitos dos administrados e ao melhor cumprimento dos fins da Administração [3].
Merece destaque ainda o artigo 53 da Lei nº 9.784/99, que estabelece que a Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, de modo que o controle da legalidade dos atos administrativos é característica fundamental de qualquer processo administrativo.
De igual modo, o artigo 56 da Lei nº 9.784/99 dispõe que das decisões administrativas cabe recurso, em face de razões de legalidade e de mérito, o que demonstra, mais uma vez, que a análise da legalidade é a razão de ser do processo administrativo.
Processo tributário
Com relação especificamente ao processo administrativo tributário, vale notar que ele tem por objetivo garantir a lisura dos lançamentos tributários, bem como garantir que a autoridade fiscal tenha ciência de todos os elementos de fato que auxiliam na determinação de todos os critérios da regra de matriz de incidência tributária.
Ao avaliar a importância do processo administrativo tributário, Fábio Fanucchi asseverava que o processo administrativo tributário evita que cheguem ao Poder Judiciário diversos casos que poderiam ser resolvidos entre as partes, exonerando total ou parcialmente o crédito tributário, quer seja em virtude da existência de defeitos insanáveis no lançamento tributário, quer seja em razão de diferenças de interpretação acerca da legislação tributária [4].
Ainda tecendo vantagens sobre o processo administrativo tributário, Fábio Fanucchi cita as seguintes características: (i) especialização técnica dos julgadores; (ii) independência dos julgadores em relação aos agentes fiscais que procederam ao lançamento; (iii) livre convencimento dos julgadores; (iv) duplo grau de “jurisdição” com mais de uma instância administrativa; e (v) oportunidade para prévia discussão da matéria e formação de provas, que podem inclusive vir a ser aproveitadas em futuro litígio judicial [5].
Outra característica fundamental do processo administrativo tributário é que ele se distancia do culto ao formalismo, tão presente no processo judicial [6]. Geraldo Ataliba destaca que o informalismo presente no processo administrativo tem por objetivo a realização do direito material, isto é, o que interessa é a aplicação da lei, de modo que o contribuinte deve ter o direito de se defender da maneira mais ampla e irrestrita, sem nenhum tipo de cerceamento [7].
Ao ampliar o disposto no artigo 26-A do Decreto nº 70.235/72 e permitir que um decreto não possa ser afastado, ainda que seja manifestamente ilegal, o atual Regimento do Carf parte do pressuposto de infalibilidade presidencial e contraria a lógica de controle de legalidade dos atos administrativos pelo próprio Poder Executivo.
Se o artigo 98 do atual Regimento Interno do Carf passar a ser interpretado de forma literal, as vantagens anteriormente elencadas relacionadas com o processo administrativo fiscal acabam por ser em grande parte neutralizadas, o que acarretará um aumento da judicialização dos processos tributários em casos que poderiam ser muito mais facilmente resolvidos administrativamente.
Em complemento às considerações aqui trazidas até então, tive a oportunidade de atuar durante seis anos como conselheiro julgador do Conselho Municipal de Tributos da cidade de São Paulo.
Diferentemente do processo administrativo tributário federal, o Poder Legislativo municipal paulistano deliberou e votou a Lei nº 14.107/05, que prevê no parágrafo único de seu artigo 53 que: “não compete ao Conselho Municipal de Tributos afastar a aplicação da legislação tributária por inconstitucionalidade ou ilegalidade”.
Dessa forma, houve deliberação e aprovação pelos representantes políticos dos cidadãos paulistanos de que não é possível afastar a aplicação da legislação tributária (termo que inclui atos infralegais dos mais diversos) sob fundamento de ilegalidade (além do já tradicional fundamento de inconstitucionalidade).
Tal dispositivo legal foi reafirmado no atual Regimento Interno do Conselho Municipal de Tributos, instituído pela Portaria SF n. 213/21, sendo que o artigo 7º do referido regimento interno estabelece que não compete ao Conselho Municipal de Tributos: “afastar a aplicação da legislação tributária por inconstitucionalidade ou ilegalidade”.
Ademais, tanto a Lei nº 14.107/05 quanto o Regimento Interno do Conselho Municipal de Tributos dispõem que “cabe pedido de reforma, dirigido ao Presidente do Conselho, em face de decisão contrária à Fazenda Municipal, proferida em recurso ordinário, que afastar a aplicação da legislação tributária por inconstitucionalidade ou ilegalidade”.
Ainda que eu particularmente entenda que a instituição de um dispositivo legal vedando o afastamento da aplicação da legislação tributária por ilegalidade possa tornar extremamente ineficiente o processo administrativo tributário enquanto meio de solução de controvérsias tributárias, no caso do Conselho Municipal de Tributos de São Paulo, tal disposição veio por lei, ou seja, por meio do Poder Legislativo, o que é muito mais legítimo do que uma ampliação das vedações de afastamento de Decreto por ato do Ministério da Fazenda.
Diante de todo o exposto, entendo que a vedação constante no artigo 98 do atual Ricarf deve ser alterada para que seja especificada que tal vedação somente alcança o afastamento sob fundamento de inconstitucionalidade, sob pena de estarmos ampliando no âmbito do Poder Executivo o alcance da vedação prevista no artigo 26-A do Decreto n. 70.235/72 e tornando menos eficiente o processo administrativo tributário.
*este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.
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[1] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 428.
[2] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002. pp. 439-440.
[3] Lei n. 9.784/99: “Art. 1o Esta Lei estabelece normas básicas sobre o processo administrativo no âmbito da Administração Federal direta e indireta, visando, em especial, à proteção dos direitos dos administrados e ao melhor cumprimento dos fins da Administração”.
[4] FANUCCHI, Fábio. Processo Administrativo Tributário. In: PRADE, Péricles Luiz M. CARVALHO, Célio B. de. Novo Processo Tributário. São Paulo: Resenha Tributária, 1975. pp. 40-41.
[5] FANUCCHI, Fábio. Processo Administrativo Tributário. In: PRADE, Péricles Luiz M. CARVALHO, Célio B. de. Novo Processo Tributário. São Paulo: Resenha Tributária, 1975. pp. 40-41.
[6] BOTALLO, Eduardo Domingos. A Prova no Processo Administrativo Tributário Federal. In: ROCHA, Valdir de Oliveira. Processo Administrativo Fiscal. 6º Volume. São Paulo: Dialética, 2002. p. 13.
[7] ATALIBA, Geraldo. Princípios de Procedimento Tributário. In: PRADE, Péricles Luiz M. CARVALHO, Célio B. de. Novo Processo Tributário. São Paulo: Resenha Tributária, 1975. pp. 33-34.