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(I)legitimidade do MP e danos morais na violência doméstica


Opinião

Inicialmente, objetivando refutar (ou, pelo menos, amenizar) quaisquer críticas de cunho humanitário ao que se pretende aqui defender e evitar o etiquetamento deste subscritor como misógino, machista, retrógrado ou algo semelhante, esclareço que tenho plena ciência das agruras as quais são subsumidas as vítimas de violência doméstica e familiar, precipuamente em razão da minha aguerrida e incansável atuação na defesa das mulheres, nas fases exo e endoprocessuais, com amparo no artigo 27 da Lei 11.340/06, que trouxe a providencial “Assistência Qualificada” [1].

Veja: não defendo a inviabilidade do anseio indenizatório, mas tão-somente ilegitimidade por parte do órgão ministerial de fazê-lo. Portanto, leitores, concito-vos a refletirem acerca da (im)possibilidade técnico-processual de o representante do Ministério Público formular pedido indenizatório no bojo da peça acusatória por ele oferecida.

Não tenho a pretensão de reverberar o que vocifera a, diga-se de passagem, qualificadíssima doutrina, a qual sustenta a inconstitucionalidade do aludido dispositivo legal em razão da ofensa ao postulado do devido processo legal e, por conseguinte, do quadrinômio estrutural do contraditório [2], já que, em tese, não há instrução específica com a indicação de valores e provas suficientes, proporcionando ao réu a possibilidade de se defender e produzir contraprova.

Pretendo, sim, controverter a legitimidade do órgão ministerial para pleitear, na tutela dos interesses da vítima, a condenação do acusado em danos morais e materiais experimentados pela vítima.

É consabido que, com a reforma do Código de Processo Penal, o legislador inseminou no famigerado e “remendadíssimo” almanaque processual-penal, mais precisamente no artigo 387, inciso IV, a possibilidade de o magistrado fixar valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, quando da prolação do édito condenatório.

Eis o dispositivo legal em comento, in verbis:

“Art. 387. O juiz, ao proferir sentença condenatória:

IV – fixará valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido; (Redação dada ao inciso pela Lei nº 11.719, de 20.06.2008, DOU 23.06.2008, com efeitos a partir de 60 (sessenta) dias após a data de sua publicação)”

É cediço que o direito de ação é uma faculdade da parte, a qual poderá exercê-lo se desejar. Qualquer tentativa desprovida de legitimidade (no caso em comento, demandante distinto da vítima, da sua assistência qualificada, da assistência à acusação ou dos seus sucessores processuais) não passará de pura arbitrariedade, um Hobbesiano “Estado de Natureza Processual” ou até mesmo um “Estado de Natureza Hermenêutico” (interpretativo sistemático) [3], que, por óbvio, deve ser rechaçado [4].

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Cuida o artigo 127 da CRFB/88 [5] de que ao Ministério Público é atribuída a defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Caracterizam-se como interesses indisponíveis os de ordem pública e os interesses públicos, os quais, por esse motivo, não permitem que os respectivos titulares deles disponham. Em apertada síntese, são direitos que emergem, desenvolvem-se e são extintos sem quaisquer interferências de seus titulares. Nesse caso específico, pertence ao Ministério Público o sacerdócio de zelar pelos direitos intransmissíveis e irrenunciáveis, seja em favor do coletivo ou de um único indivíduo.

Ilegitimidade ativa e inconstitucionalidade progressiva

Nessa linha intelectiva, conclui-se com relativa facilidade que a proteção pelo Parquet não engloba direitos patrimoniais, ou seja, direitos disponíveis e, portanto, transacionáveis pelo próprio titular .

Sabe-se que o direito à indenização insere-se no âmbito dos direitos patrimoniais, disponíveis. Nesta ordem de ideias, ao ser formulado na peça acusatória, em sede de ação penal pública, pedido indenizatório em decorrência do dano causado pelo autor do ilícito penal, patente a configuração de ilegitimidade ativa para tanto.

No dizer de Aury Lopes Junior, o Ministério Público exerce uma pretensão acusatória que, ao fim e ao cabo, poderá redundar, após o devido processo legal, no exercício do poder punitivo por meio do juiz, na aplicação da pena. Portanto, conferir-lhe, também, a defesa dos interesses indenizatórios da vítima pode acabar desvirtuando a sua real finalidade constitucional, fomentando uma ideia meramente vingativa e, por conseguinte, retrógrada, reacionária [6].

Vale lembrar da conhecidíssima celeuma que gravitava em torno do artigo 68 do Código de Processo Penal [7]. Fato é que a citada norma foi submetida ao controle de constitucionalidade, inaugurando-se a técnica judicial da “inconstitucionalidade progressiva” ou “inconstitucionalidade em trânsito” [8]. Explico:

A inconstitucionalidade progressiva é a técnica de flexibilização do controle de constitucionalidade, aplicada pelo Supremo Tribunal Federal, em situações em que circunstâncias fáticas vigentes sustentam a manutenção das normas questionadas dentro do ordenamento jurídico.

O instituto em comento é influência dos precedentes da Corte Constitucional Federal alemã que, em alguns casos de normas em processo de inconstitucionalização, aplica a hipótese denominada apelo ao legislador (Appellentscheidung).

Nesse caso, a Corte Constitucional alemã, aderindo à ideia de uma norma ou uma situação jurídica que ainda não se tornou inconstitucional, mas caminha paulatinamente em direção ao desfiladeiro do expurgo normativo, cientifica o legislador a fim de que ele corrija ou adeque ao caso concreto, evitando-se, assim, a sua “inconstitucionalização”, podendo até estipular um prazo para realizá-lo [9].

Entendimento do STF, legitimidade da advocacia e a capacidade postulatória da mulher

Instado a se manifestar acerca da constitucionalidade do artigo 68 do Código de Processo Penal, o Supremo Tribunal Federal expôs que “enquanto não criada por lei, organizada – e, portanto, preenchidos os cargos próprios, na unidade da Federação – a Defensoria Pública, permanece em vigor o artigo 68 do Código de Processo Penal, estando o Ministério Público legitimado para a ação de ressarcimento nele prevista. Irrelevância de a assistência vir sendo prestada por órgão da Procuradoria Geral do Estado, em face de não lhe competir, constitucionalmente, a defesa daqueles que não possam demandar, contratando diretamente profissional da advocacia, sem prejuízo do próprio sustento” (RE 135328/SP, DJ 20.04.2001).

A contrario sensu, em razão de a aguerrida e combativa Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, atualmente, prestar um serviço de excelência técnica, não há precariedade institucional que justifique a legitimidade extraordinária do Ministério Público nos casos de pretensão indenizatória, sobretudo na seara processual-penal.

Ademais, o artigo 27 da Lei 11.340/06 diz que: “Em todos os atos processuais, cíveis e criminais, a mulher em situação de violência doméstica e familiar deverá estar acompanhada de advogado, ressalvado o previsto no art. 19 desta Lei”. Isto é, o advogado que atua na assistência qualificada em prol da mulher tem muito mais legitimidade para o pleito indenizatório previsto no artigo 387, IV, do CPP do que o Ministério Público.

A própria mulher vítima de violência doméstica possui capacidade postulatória.

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E foi o que fez a Lei Ordinária Federal nº 11.340, de 07 de Agosto de 2006, autorizando expressamente que a mulher vítima de violência doméstica e familiar possa requerer as Medidas Protetivas de Urgência ao Poder Judiciário, sem a necessidade de constituição de advogado ou patrocínio da Defensoria Pública [10].

Senão, vejamos:

“Art. 19. As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas pelo juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida.

(…)”

Ora, se a própria vítima possui a prerrogativa processual de gênero (capacidade postulatória) para requerer medidas protetivas de urgência, por qual motivo não poderia ela pleitear a condenação do réu em danos morais e materiais?

Se a vítima tem especial capacidade postulatória para requerer a decretação de medidas protetivas de urgência, que são inquestionavelmente constritivas, por qual motivo não poderia ela pugnar pelo anseio indenizatório?

Conquanto não se admita a extensão dessa prerrogativa processual de gênero para os pleitos indenizatórios, pode a vítima, por intermédio da sua assistência qualificada, fazê-lo ou até mesmo desistir de tal desiderato, que ostenta caráter patrimonial, tratando-se, portanto, de direito disponível.

Considerações finais

Por fim, malgrado o Superior Tribunal de Justiça, no Tema 983, ter sedimentado o entendimento de que o dano moral, no contexto de violência doméstica, é in re ipsa (pela força dos próprios fatos) [11], ou seja, presumido, certo é que tal natureza não credencia o Ministério Público a formular pedido indenizatório. O dano moral, no contexto de violência doméstica, ostentar natureza presumida nada tem a ver com a discussão sobre a legitimidade.

Dessarte, por tais motivos, reputo necessário e providencial desconstruir essa ilusória legitimidade do Parquet, preservando-a tão-somente em relação à vítima, isoladamente ou por intermédio de suas assistência qualificada ou de acusação.

 


[1] Art. 27 da Lei nº11.340/06: Em todos os atos processuais, cíveis e criminais, a mulher em situação de violência doméstica e familiar deverá estar acompanhada de advogado, ressalvado o previsto no art. 19 desta Lei;

[2] https://jus.com.br/amp/artigos/37506/o-art-10-do-novo-codigo-de-processo-civil-o-contraditorio-como-influencia-e-nao-surpresa;

[3] HOBBES, T. Leviatã. Tradução: João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2003;

[4] https://www.conjur.com.br/2016-out-08/diario-classe-antimanual-compreender-estado-natureza-hermeneutico/;

[5] Art.127, caput da CRFB/88: O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis;

[6] https://canalcienciascriminais.com.br/mp-fixacao-indenizacao/;

[7] Art. 68 do Código de Processo Penal: Quando o titular do direito à reparação do dano for pobre (art. 32, §§1e 2), a execução da sentença condenatória (art. 63) ou a ação civil (art. 64) será promovida, a seu requerimento, pelo Ministério Público;

[8] https://www.conjur.com.br/2015-jul-25/rafaella-lima-inconstitucionalidade-progressiva-necessaria/;

[9] https://www.conjur.com.br/2015-jul-25/rafaella-lima-inconstitucionalidade-progressiva-necessaria/;

[10] https://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=11915);

[11] https://processo.stj.jus.br/jurisprudencia/externo/informativo/?acao=pesquisarumaedicao&livre=0621.cod.).




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