entre avanços e incertezas regulatórias
Opinião
A “fair share”, ou “contribuição justa”, remete à ideia de que “todas as partes envolvidas nos benefícios proporcionados por determinados recursos devem, de forma justa, arcar com seu ônus” (Campos, 2024).
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No setor de telecomunicação, tal conceito costuma ser traduzido nas propostas para o compartilhamento dos custos de manutenção e atualização infraestrutura de rede entre as prestadoras do serviço de telecomunicação e as empresas de tecnologia que produzem conteúdo. A fim de fazer breves comentários sobre esse tema, esse artigo tem como objetivo analisar a controvérsia de fundo, destacando alguns dos principais argumentos a favor e contra a cobrança; expor as principais iniciativas regulatórias no Brasil; e discutir os avanços e as experiências internacionais.
Considerações introdutórias sobre a fair share
A discussão sobre a necessidade de compartilhamento dos custos de infraestrutura é relativamente nova. Um marco importante, que deu tração ao debate, foi a manifestação conjunta, em 2022, dos CEOs da Telefonica, Vodafone, Deutsche Telekom e Orange.
Os representantes das grandes empresas de telecom da Europa indicavam a insustentabilidade do modelo atual, em que as big techs teriam lucros exorbitantes e custos baixos, enquanto as empresas de telecomunicação estariam em situação inversa.
A discussão fica ainda mais relevante pelo fato de que as seis principais big techs — Facebook, Amazon, Google, Apple, Netflix, e Microsoft — geram mais da metade do tráfego na internet (Sandvine’s 2023 Global Internet Phenomena Report), mas não contribuem para os custos das atualizações e manutenção da infraestrutura de rede, que são imprescindíveis para o fornecimento dos seus serviços.
Exemplificando, no estudo “Global Phenomena Report” acima citado, constatou-se que mais da metade do volume de tráfego na internet está relacionado às atividades das seis principais big techs. O Google, sozinho, representa mais de 20% do total desse fluxo, sendo seguido de perto pelo Facebook (15%), Netflix (9%), Apple (4%) e Amazon e Microsoft com aproximadamente 3,5% cada.
O compartilhamento de custos, no entanto, é altamente controvertido, especialmente quanto aos limites da regulação de setores especializados/intervenção estatal na dinâmica empresarial. Os players contrários ao fair share, a exemplo da Associação Brasileira de Provedores de Internet e Telecomunicações (Abrint), argumentam que a criação de cobrança dos provedores seria uma “forma artificial e intervenção regulatória”, que pode gerar prejuízos significativos à economia digital e aos consumidores.
O principal fundamento apresentado pela ala contrária à instituição de medidas visando a fair share é o princípio da neutralidade de rede — que tem origem nos trabalhos de Tim Wu no início dos anos 2000. Em síntese, segundo esse conceito, “o tráfego da internet deve ser tratado sem discriminação, restrição ou interferência injustificada, independentemente de sua origem, destino, tipo, conteúdo, serviço ou aplicativo”, (Como notam Freire e Campos).
No Brasil, críticos ao fair share têm destacado que o compartilhamento dos custos de manutenção e melhoria de infraestrutura de telecomunicação poderia levar ao bloqueio ou limitação do tráfego, em contrariedade ao Marco Civil da Internet. Isso, porque, por meio desse novo custo, supostamente ocorreria uma indevida interferência na organização e acesso de cada um dos provedores de conteúdo digital à rede.
Spacca
No entanto, especialistas afirmam que há diversas arquiteturas regulatórias e modos de se implementar a fair share sem se violar o princípio da neutralidade da rede — havendo argumentos, inclusive, de que os movimentos contra a tarifa muitas vezes nada mais são do que uma tentativa de manutenção do status quo, beneficiando as plataformas em detrimento dos usuários finais (Freire e Campos).
Outro ponto importante de ser discutido diz respeito à operacionalização de eventual fair share em um contexto regulatório de grande pulverização de operadoras de banda larga no país. No evento Futurecom 2023, por exemplo, o representante da TelComp destacou que “as grandes operadoras podem sentar e negociar, mas e as pequenas operadoras, como vão receber? Isso pode gerar distorção muito grande”.
Iniciativas de discussão e regulamentação da fair share no Brasil
Essas preocupações acima, citadas a título meramente exemplificativo, representam a dificuldade do tema, que está atualmente sendo discutido em diversas instâncias da administração pública brasileira.
Nos últimos anos, a Anatel disponibilizou duas tomadas de subsídios relacionadas à fair share. No ano passado, foi instituída a Tomada de Subsídios nº 13/2023 sobre o regulamento de deveres dos usuários de serviços de telecomunicação, questionando, entre outros, “quais mecanismos poderiam ser utilizados para que os agentes SVA (plataformas digitais) contribuam com a expansão das redes de telecomunicações”.
Dando continuidade à sua agenda regulatória, a Anatel instituiu a Tomada de Subsídio nº 26/2024, tendo como um dos principais questionamentos os “riscos de desequilíbrio entre prestadores de serviços de telecomunicações e provedores de SVA com possibilidade de reflexos na conectividade e no ecossistema digital”. Em linha com as tomadas de subsídios, diversos players de mercado se manifestaram a favor e contra a cobrança da fair share, fato que reitera a complexidade das escolhas regulatórias e a divisão dos agentes setoriais sobre a instituição da cobrança.
Ao mesmo tempo que a Anatel avança no debate regulatório junto aos agentes de mercado, também merece ser destacada a iniciativa legislativa do Projeto de Lei 469/24, que busca a proibição absoluta da referida cobrança, sem, no entanto, trazer dados técnicos para tanto. Embora o PL ainda esteja em um estágio inicial de tramitação — aguardando parecer do relator na Comissão de Comunicação (CCOM) —, a proposta demonstra a dinâmica regulatória e a tentativa de parlamentares em também dispor sobre a matéria, apesar de, em um primeiro momento, ser óbvio que tal tema precisa de participação da Anatel, pois apenas a autarquia possui, na administração pública, todos os elementos e expertise para debater efetivamente sobre a instituição da fair share.
Experiência internacional
As discussões sobre fair share não são exclusivas do Brasil. Nos Estados Unidos, em 2023, foi introduzida uma proposta (Funding Affortable Internet with Reliable Contributions Act) para direcionar a Federal Communications Commission (FCC) a estudar a participação de provedores de conteúdo nos esforços financeiros relativos à infraestrutura setorial.
Na União Europeia, em movimento semelhante, a Comissão Europeia está empreendendo medidas de realização de “um diálogo aberto, com todas as partes interessadas, sobre a necessidade potencial de todos os atores que se beneficiam da transformação digital possam contribuir de forma justa para os investimentos em infraestruturas de conectividade”.
Como consequência dessas medidas de diálogo instauradas, houve a consolidação de agentes setoriais com posições opostas sobre a cobrança de fair share, a exemplo da Belgian Institute for Postal Services and Telecommunications (contrário) e da Fair Share Initiative (favorável), que têm adotado posicionamentos relevantes e fundamentados sobre as propostas de arquitetura regulatória.
Em alguns países específicos, no entanto, a discussão parece estar mais avançada. Na Coreia do Sul, por exemplo, o caso K Broadband v. Netflix é comumente tido como um dos principais exemplos internacionais de judicialização da cobrança. Após idas e vindas, e anos de litígio, as empresas envolvidas anunciaram, em setembro de 2023, uma parceria estratégica (não há, no entanto, maiores informações sobre os termos do acordo).
Do ponto de vista legislativo, foi aprovado, em 2022, a Lei de Estabilização de Serviços da Coreia do Sul, que “estabeleceu a exigência de que os cinco maiores provedores de conteúdo digital do país … negociem com os provedores de conexão para fins de recuperação de custos” (Campos, 2024).
Possíveis arquiteturas regulatórias do fair share e necessidade de amplo debate setorial
O que se percebe do aumento de discussões sobre a implementação da fair share no Brasil e no mundo é que a necessidade do compartilhamento dos investimentos vem se mostrando cada vez mais uma exigência da dinâmica do mercado digital. Afinal, como destacado por Ricardo Campos, “a maioria dos atores do ecossistema da internet concorda com a existência de um problema estrutural no modelo atual da Internet que ameaça a sustentabilidade das redes”, especialmente em relação ao crescimento exponencial dos serviços de mídia Over the Top no mercado e a complexa relação (muitas vezes de concorrência) entre aqueles que exploram suas atividades na internet e as operadoras responsáveis pela estrutura.
Exemplificando, conforme apurado no relatório The Internet Value Chain 2022, a cadeia de valor da internet em 2022 totalizou US$ 6,7 trilhões, sendo que 57% foi gerado por serviços online, em contrapartida a um percentual bem menor de acesso e conectividade.
Nesse cenário, no entanto, não há consenso sobre as possíveis soluções. Há quem defenda mecanismos diretos de compensação ou a criação de fundos como mecanismos de compensação indireta, por exemplo, e ambos os mecanismos possuem pontos positivos e negativos. De todo modo, e como boa parte das discussões regulatórias, não existe uma única abordagem possível para o problema, sendo possível se pensar em inúmeras arquiteturas regulatórias para se equilibrar ônus financeiros de investimento em infraestrutura de rede.
O que é importante de se considerar, por enquanto, é o fato de que parece ser necessária a instituição de alguma medida capaz de atender a fair share, uma vez que o aumento exponencial dos custos estruturais tende a colapsar as empresas prestadoras do serviço de telecomunicação, sendo razoável exigir daqueles que mais obtém proveitos uma parcela de contribuição para a expansão e melhoria da infraestrutura digital.
Conclusão
Em síntese, apesar de ser inegável que as grandes empresas de tecnologia são fundamentais no ecossistema da internet, cada vez mais é evidente que elas se beneficiam dos serviços de telecomunicação que dão suporte ao tráfego gerado sem contribuir significativamente para o desenvolvimento da infraestrutura de rede.
Por esse motivo, como política de inclusão digital, é preciso se considerar a fair share como solução para esse problema. Isso porque a referida cobrança é elemento relevante para o desenvolvimento da conectividade no Brasil, considerando que, “ao incluir as grandes empresas de tecnologia no custeio de manutenção e atualização da infraestrutura, permitem-se que sejam ampliadas as possibilidades de garantia de conectividade universal e significativa, em benefício de toda a sociedade” (Campos, 2024).