Anteprojeto da Lei de Processo Estrutural
Opinião
Relatório preliminar anteprojeto do processo estrutural
A comissão de juristas, sob relatoria de Edilson Vitorelli, apresentou, no último dia 16 de setembro, o relatório preliminar do anteprojeto de lei sobre o processo estrutural no Brasil. A minuta, conduzida por um dos principais especialistas na teoria do processo estrutural, é passo significativo na formulação e na discussão das futuras diretrizes legais aplicáveis às demandas estruturantes.
O desembargador federal defendeu, em publicações recentes, que os processos estruturais são espécies de processos coletivos, e pretendem a reorganização de uma instituição ou arranjo burocrático (público ou privado) que, pela forma com que opera, viole (ou permita a violação) direitos [1]. Trata-se, portanto, de técnica processual que visa remediar problemas complexos.
A solução para tais litígios, ditos policêntricos [2], não encontra alicerce no procedimento comum clássico, visto que a tomada de providências prospectivas, graduais e duradouras demanda a adoção de novas técnicas processuais.
Aliás, autores como Abram Chayes [3], há muito, apontam para a insuficiência do modelo processual tradicional, orientado para a resolução de lides bipolares. Para o jurista, a litigância moderna compreende conflitos que não surgem apenas de disputas entre particulares acerca de interesses privados, mas, também, aqueles que decorrem de violação e/ou reivindicação por políticas públicas ou medidas constitucionais.
Embora a teoria do processo estrutural não esteja sendo atualmente contestada, sua viabilidade prática, eficácia e integração com os demais poderes têm sido objeto de consideráveis críticas. Diante deste cenário, as expectativas em relação ao relatório preliminar apresentado pelo Senado eram substanciais, especialmente no anseio de que o documento pudesse esclarecer parte das dúvidas.
Aspectos gerais da minuta anteprojeto de lei
Logo em seu artigo 1º, a minuta conceitua o objeto do processo estrutural, tido como o conflito coletivo de significativa abrangência social, cuja solução adequada demanda providências prospectivas, graduais e duradouras.
Segundo frisa a exposição de motivos, a conceituação há de ser clara e sucinta, a fim de evitar “[…] incorporar concepções abrangentes de processo […] que não parecem convenientes, uma vez que exigiriam regramentos minuciosos em suas peculiaridades”. Ao passo que, “nem todo processo coletivo é estrutural. E processos individuais não são processos estruturais.”
Com efeito, a tríade conceitual supramencionada indica a necessidade de um procedimento flexível, que possibilite a adoção de técnicas dúcteis [4], aptas à harmonização da intervenção judicial na concretização de direitos fundamentais [5].
Sérgio Cruz Arenhart, ao exemplo do que defendeu Vitorelli, sustenta que os processos estruturais objetivam (ou deveriam objetivar) a alteração substancial, com vistas para o futuro, de determinada prática ou instituição [6]. O doutrinador também chama atenção para a essencialidade das decisões/soluções consensuais, bem como para a necessidade de priorização de soluções tecnicamente factíveis.
Spacca
Como consequência disso, ao propor a positivação do microssistema flexível dos processos estruturais, o anteprojeto, além de reforçar princípios caros ao Código de Processo Civil de 2015, também firma a ideia de cooperação entre as partes (ou centros de interesse) [7], prevendo a prevalência da resolução consensual e integral dos processos.
O anteprojeto estabelece o que já é reconhecido como contraditório efetivo. promovendo a ampla participação do juiz, dos centros de interesse envolvidos, e dos sujeitos públicos ou privados que serão impactados pela decisão [8].
Além disso, também propôs adoção de medidas prospectivas, com ampla publicidade e transparência, levando-se em consideração, não só a legislação aplicável ao caso concreto, mas, também, os impactos (futuros) decorrentes das decisões e das medidas estruturantes.
É importante pontuar, tal como faz a exposição de motivos, que os processos estruturais não se confundem com instrumentos de intervenção em políticas públicas. Muito pelo contrário. O objetivo, aqui, é a construção consensual e gradual de condições para que a solução de determinado conflito complexo seja sustentável, progressiva e duradoura.
O próprio conceito de processo estrutural afasta a violação da esfera de ingerência dos Poderes Executivo e Legislativo. Isso porque as técnicas empregadas em tais litígios visam somente a correção de desconformidades e a concretização de direitos fundamentais.
Segundo Sérgio Arenhart e Gustavo Osna, não é a técnica estrutural que autoriza ou desautoriza, viabiliza ou inviabiliza a participação do Judiciário. Em verdade, tal discussão é pretérita. Quando o problema complexo se apresenta, cabe ao órgão adjudicador a utilização das melhores técnicas de resolução possíveis [9].
No mais, os autores [10] esclarecem que, “sustentar que os processos estruturais violam a “separação de poderes”, ou configuram caso indesejado de “ativismo judicial”, nada mais é do que culpar o cirurgião por utilizar um meio ótimo para realizar intervenção que foi clinicamente prescrita” [11].
As técnicas estruturantes, portanto, integram aos elementos do processo civil ordinário mecanismos de flexibilização procedimental.
Essa abordagem é evidenciada no artigo 6º, o qual reafirma os princípios orientadores do processo civil e confirma o a necessidade de promoção de eficiência, adaptabilidade e efetividade na resolução de litígios complexos. Assim, busca aprimorar a prática judicial, adequando-a às demandas contemporâneas.
Sobre isso, essencial destacar que, embora o anteprojeto institua uma série de mecanismos de flexibilização do procedimento, resguarda o horizonte de conclusão, caracterizado como o objetivo final do processo [12].
Em resumo, a disposição das técnicas no dispositivo supramencionado, não apenas orienta a prática judicial, mas também consolida a importância de um framework adaptável e bem estruturado para a gestão dos litígios estruturais, promovendo um equilíbrio entre a previsibilidade e a flexibilidade necessárias para um processo eficaz e justo.
Em sequência, o artigo 7º, trata do plano de atuação estrutural, isto é, estratégia progressiva de enfrentamento concreto do problema complexo. A transparência e a publicidade são premissas fundamentais para a efetivação do aludido plano, fomentando a legitimidade da atuação jurisdicional em casos de grande repercussão [13].
Aqui, é interessante a menção expressa às seguintes diretrizes metodológicas, constantes na exposição de motivos, a serem observadas quando da elaboração/construção do plano de ação:
“i) respeito ao conhecimento e à capacidade institucional do próprio sujeito responsável pela atividade sobre a qual recai o processo, considerando as suas dificuldades reais e obstáculos; ii) fomento à consensualidade e ao diálogo, a fim de que o plano seja resultado, sempre que possível, do diálogo construtivo entre as partes e o grupo impactado; e iii) flexibilidade e possibilidade de revisão do plano, à medida que a implementação avançar e trouxer mais elementos de fato.”
Também merecem destaque as medidas de institucionalização dos processos estruturais, positivadas pelo artigo 9º. Em suma, o anteprojeto prevê a criação de bancos de dados, a fim de que a população e os próprios membros do Judiciário possam ter amplo e fácil acesso aos processos indexados como estruturais. Além disso, a coleta de dados visa facilitar a elaboração de relatórios e estabelecimento de controles estatísticos.
Finalmente, o artigo 10, em diálogo com aquilo que prevê o artigo 20 e seguintes da Lindb, permite o intercâmbio das técnicas processuais aplicáveis aos processos estruturais para outros âmbitos do direito, tais como os processos administrativos.
Prognóstico positivo
Conclui-se, a partir dos itens apresentados, que o anteprojeto de lei busca solucionar a inadequação do procedimento comum na gestão de problemas complexos, cuja abordagem não se alinha à estrutura tradicional do processo civil. Logo, o texto evita definir um procedimento excessivamente detalhado ou rigidamente técnico, promovendo, assim, um ambiente mais flexível e adaptável.
Ademais, destaca-se que a instrumentalidade do processo, em casos de grande complexidade, só se concretiza quando sustentada por mecanismos de consensualidade e publicidade, que conferem legitimidade às decisões tomadas. Não é possível garantir o contraditório de todas as partes envolvidas sem a implementação de mecanismos de publicização e simplificação do procedimento.
Tais elementos são fundamentais para assegurar a transparência e a equidade no processo, permitindo que todos os participantes tenham acesso às informações relevantes e a oportunidade de se manifestar de maneira efetiva. A publicização fundamenta a legitimidade das decisões, enquanto a simplificação do procedimento facilita a participação ativa das partes — aspectos essenciais para a construção de um ambiente processual justo e colaborativo.
Em conclusão, o anteprojeto, ao introduzir técnicas de flexibilização procedimental, viabiliza a criação de planos de ação adaptáveis que atendem às particularidades dos problemas enfrentados. Trata-se de abordagem minimalista, que contribui para a consolidação do microssistema de processo estrutural, reforçando princípios e ferramentas essenciais para a gestão de demandas complexas e, por tal motivo, permite a (re) construção progressiva de um “estado ideal de coisas” nas comunidades.
[1] VITORELLI, Edilson. Levando conceitos a sério: processo estrutural, processo coletivo, processo estratégico e suas diferenças. Revista de Processo. v. 284/2018, p. 333-369, out./2018.
[2] VIOLIN, Jordão. Processos estruturais em perspectiva comparada: a experiência norte-americana na resolução de litígios policêntricos. Tese (Doutorado em Direito). Orientador: Prof. Dr. Sérgio Cruz Arenhart – Universidade Federal do Paraná. Curitiba: 2019.
[3] CHAYES, Abram. The role of the judge in public law litigation. Harvard Law Review, [s.
l.], v. 89, n. 7, p. 1281-1316, 1975-1976.
[4] ARENHART, Sérgio Cruz. OSNA, Gustavo. Desmistificando os processos estruturais–“processos estruturais” e “separação de poderes. Revista de processo. Vol. 331. 2022.
[5] SOUZA JUNIOR, Joaquim Ribeiro de. LOPES, Marco Túlio Rodrigues. O PROCESSO ESTRUTURAL COMO INSTRUMENTO DE HARMONIZAÇÃO DA INTERVENÇÃO JUDICIAL NA CONCRETIZAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS COM A REALIDADE SOCIOECONÔMICA. Facit Business and Technology Journal 1.29 (2021).
[6] ARENHART, Sérgio Cruz. Processos estruturais no direito brasileiro: reflexões a partir do caso da ACP do carvão. Revista de Processo Comparado: RPC, v. 1, n. 2, p. 211-229, jul./dez. 2015.
[7] Nomenclatura utilizada para designar as partes integrantes de processos estruturais, considerando a inadequação noção dicotômica dos polos processuais tradicionais.
[8] Terceiros interessados, também chamados de stakeholders afetados pelo conflito.
[9] ARENHART, Sérgio Cruz. OSNA, Gustavo. Desmistificando os processos estruturais–“processos estruturais” e “separação de poderes. Revista de processo. Vol. 331. 2022.
[10] ARENHART, Sérgio Cruz. OSNA, Gustavo. Curso de Processo Civil Coletivo. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Ed. RT, 2022.
[11] BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Revista Interesse Público. n. 46. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2007.
[12] Previsão do art. 7º, VII, que fixa requisitos essenciais à validade do plano estrutural – VII – prazos, parâmetros ou indicadores que definirão o encerramento do processo;
[13] ARENHART, Sérgio Cruz. OSNA, Gustavo. JOBIM, Marco Félix. Curso de Processo Estrutural. São Paulo: Ed. RT, 2021.