Negacionismo de mercado na nova Lei de Licitações e Contratos
Já nos manifestamos sobre o tema da publicidade dos atos licitatórios, observando a ausência de necessidade de publicação no Diários Oficiais do Estado (DOE) [1] quando não houver verba deste ente político. Melhor analisando a questão, porém, chegamos a uma conclusão mais consentânea com os princípios da administração pública, com o respeito às regras do mercado bem como com o princípio da competitividade.
Com a devida venia, a repetição da publicidade nos Diários Oficiais da União e do Estado não tem finalidade substancial de garantir maior publicidade já que esta é obtida no Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) e jornal diário de grande circulação. Trata-se, data venia, de versão piorada da “corveia”, imposto da idade média que renasce feito a tiririca que infesta a lavoura. Como demonstraremos, trata-se de uma hermenêutica de inversão axiológica semelhante à hermenêutica dos nazistas junto ao Tribunal de Nuremberg. Direitos individuais metamorfoseados em monopólios artificiais autoritários. Trata-se, ainda, de tributo teratológico sem previsão constitucional.
A publicidade em jornal diário de grande circulação tem sua razão de ser pois leva a meio distinto daquele público especializado que observa e acompanha o PNCP. Há lógica e há preservação do princípio constitucional da publicidade, acentuando-o. Da mesma forma, publicação em site oficial do órgão licitante.
A publicação no Diário da União e no Diário do Estado nada mais é do que um dinossauro jurídico que resiste, anacronicamente, à mudança climática dos princípios da economicidade, eficiência ,competitividade e transparência.
Por uma refinada ironia licitatória, a mesma lei que reconhece o mercado como parâmetro para as atividades licitatórias (a expressão “mercado” é mencionada 36 vezes na Lei 14.133/2.021) prevê publicações com preços muito superiores aos praticados no mercado numa odiosa reserva de mercado aos elefantes brancos estatais.
A politização extremada e endêmica parece ter se cristalizado em trecho legal. A extrema direita nega a ciência e a extrema esquerda nega a existência do mercado além de outros negacionismos obscurantistas de ambos os lados. Foi exatamente o que ocorreu aqui com a exigência de publicação em órgãos oficiais que tem valores infinitamente superiores aos praticados no mercado por jornais diários de grande circulação. Apenas por existirem em seus castelos estatais é que desfrutam de tal tributo anômalo.
A obrigatoriedade do artigo 54,§1º está assim prevista:
“§ 1º Sem prejuízo do disposto no caput, é obrigatória a publicação de extrato do edital no Diário Oficial da União, do Estado, do Distrito Federal ou do Município, ou, no caso de consórcio público, do ente de maior nível entre eles, bem como em jornal diário de grande circulação.”
Vedação de monopólios artificiais
Já mencionamos noutra oportunidade [2] que a Lei de Llicitações, por evidente questão principiológica, veda a existência de “monopólios artificiais”, tais como os aqui mencionados, da União e do Estado. Eles sobrevivem como reminiscência das sesmarias do Brasil colônia. Quase uma espécie de “quinto” cobrado pela simples transferência de verba como se tal transferência fosse uma “gentileza” ou uma benesse conferida pelas “coroas” do Estado e da União.
Incompatibilidade grosseira com os preços de mercado
A ironia se acentua ainda mais quando nos atentamos que a jurisprudência das Cortes de Contas exige (com inequívoca razão) que todas as aquisições observem os preços de mercado.
Spacca
Uma análise dessa “corveia ressuscitada”, porém, mostra que tais valores são superiores aos cobrados pelo mercado pelos jornais diários de grande circulação.
Vejamos os preços obtidos em 9/12/2024, para uso no presente texto, do valor médio dos avisos de licitação:
Jornal Gazeta SP: R$ 94,50, Jornal Oficial da União (DOU): R$ 384, Jornal Diário Oficial de São Paulo (DOE): R$ 600.
Tomando parâmetros do dia a dia das licitações e tendo como referência o preço de mercado (do jornal Gazeta) chegamos à conclusão de que o DOE cobra 406,34 % do preço usado como referência. Ou seja, 306,34% de sobrepreço. No caso do DOU há cobrança de 634,93% ou seja 534,93% de sobrepreço.
Talvez nossa analogia com a corveia da idade média seja desarrazoada pois o servo tinha o dever de trabalhar “apenas” dois dias na terra do senhor feudal o que significa um terço da jornada semanal 6×1. Mais inadequada, ainda, com o quinto do Brasil colônia que era “apenas” um quinto do valor do minério extraído…
Preço substancialmente menor
Antes que a hermenêutica da sanha fazendária mostre os dentes, afirmando que seriam serviços diferentes, enfrentemos o tema do preço “substancialmente menor”.
O preço na Lei de Licitações, conforme já nos manifestamos [3], é obtido pela equação (P= PN/CV, sendo P o preço, Pn o preço nominal e CV o ciclo de vida). “P”, portanto, é o preço real.
Tratando-se de uma publicação num jornal o “ciclo de vida” deve ser substituído por público leitor a fim de que seja possível aferir o preço unitário obtido pela divisão do valor da publicação pelo número do potencial de leitores.
Alguém, em sã consciência, teria coragem de afirmar que DOE e/ou o DOU atingiriam público 4 ou 6 vezes maior do que um jornal diário de grande circulação???
O sobrepreço dos Diários Oficiais é de uma obviedade ululante e o preço envergonharia qualquer agiota do mercado!
Inconstitucionalidade: princípios da eficiência e competitividade
Um dos princípios “estuprados” pela regra do reserva de mercado para os medievais Diários Oficiais é o princípio da eficiência, previsto no artigo 37, “caput” da Carta Federal.
Desperdício de dinheiro público evidente na hipótese.
Em artigo já mencionado [4], destacamos a natureza constitucional do princípio da competitividade. Assim:
“O direito à propriedade deverá atender à sua função social. A livre iniciativa é manifestação do direito de propriedade em formato de empreendimento. A função social da livre inciativa é, sem sombra de dúvidas, viabilizar a competitividade” (grifos ausentes no original)
Até mesmo o agiota Shylock, descrito por William Shakespeare na obra O Mercador de Veneza, prestava serviços bem mais em conta, exigindo apenas “uma libra da carne” do corpo do devedor.
A publicidade do PNCP supre o princípio da publicidade em boa medida e o §1º do artigo 54 da LLC deve ser interpretado no sentido de que a publicidade junto ao PNCP deve ser somada à publicidade de um jornal de grande circulação que atinge público distinto. A fiscalização também pode; e é feita; com absoluta eficiência através do PNCP.
Finalidade da publicidade
O tema da finalidade da norma nos remete ao clássico tema do julgamento dos nazistas que alegavam, basicamente, que cumpriam fielmente as leis de Hitler. Assim, dentro da lógica do Terceiro Reich, seriam indivíduos em absoluta consonância com o princípio da legalidade ainda que tenham praticado incontáveis atrocidades.
A pergunta que deve ser feita é sobre a finalidade do princípio da legalidade. Seria a proteção de antissemitas, torturadores e genocidas? Ou seria defender o cidadão comum dos abusos do Estado? Resposta óbvia e inversão axiológica evidente.
Qual é a finalidade do princípio constitucional da publicidade? Garantir o acesso aos cidadãos e licitantes à existência da licitação. Óbvia e ululante a finalidade. A arrecadação pura e simples e desprovida de resultados não é a finalidade do princípio da publicidade.
A mesma inversão axiológica feita pelos nazistas em Nuremberg é feita na hermenêutica dos elefantes brancos dos Diários Oficiais. Em ambos os casos, um princípio de defesa do cidadão comum é utilizado com inversão axiológica para a defesa dos monstros autoritários.
Seja para garantir a impunidade de genocidas ou para garantia da sanha pecuniária via monopólios artificiais, as duas interpretações são igualmente lamentáveis, autoritárias e anacrônicas.
Princípio federativo
A regra fere, ainda, o princípio federativo, por criar, na prática, um tributo anômalo e teratológico para a cobrança para a transferência de valores entre entes políticos.
A natureza jurídica dessa anomalia se aproxima de um imposto dissimulado pois cobra algo sem nenhuma contraprestação efetiva já que a publicação não dá efetiva publicidade e está é plenamente alcançada com o PNCP e jornal de grande circulação. A cobrança de impostos entre entes políticos é escancarada vedada pelo artigo 150, VI, “a” da CF.
Há, nesse monstro jurídico Dantesco, certas características de taxa já que há especificidade e divisibilidade, inobstante o “serviço” não seja substancialmente prestado, verdadeiro “pedágio da incoerência” ou corveia ressuscitada.
Interpretação conforme
Em nosso modesto sentir, a única interpretação da mencionada regra é a de que a publicação “em algum Diário Oficial” (incluso o do próprio ente público licitante) é a única interpretação da regra legal que preserva a higidez da Carta Federal de 1988.
Conclusão
A obrigatoriedade de publicação no DOE e no DOU é escancaradamente inconstitucional por ofensa aos princípios constitucionais da eficiência, princípio federativo e princípio da competitividade (que é a função social da livre iniciativa). A regra cria monopólios artificiais, ignora a existência do mercado e repete hermenêutica nazista de inversão axiológica de garantias individuais para defesa do autoritarismo. A única “interpretação conforme” da regra é a de que a exigência se refere a um único Diário Oficial, inclusive o D.O. do próprio ente público licitante.
[1] https://www.migalhas.com.br/depeso/393722/nllc-extincao-da-publicacao-obrigatoria-no-doe
[2] https://www.conjur.com.br/2024-jul-02/licitacao-clausulas-uniformes-e-os-monopolios-artificiais/
[3] https://www.migalhas.com.br/depeso/398490/nllc-preco-substancialmente-menor-e-ciclo-de-vida
[4] https://www.conjur.com.br/2024-jul-02/licitacao-clausulas-uniformes-e-os-monopolios-artificiais/