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O paradoxo do devedor contumaz na transação tributária

A Zenão de Eleia é constantemente atribuído o predicado de filósofo pré-socrático dos paradoxos, especialmente por sua forma de contrapor as teorias com as quais não concordava, valendo-se de método eminentemente negativo para demonstrá-las absurdas e contraditórias.

Entre 384 a.C e 322 a.C, Aristóteles descrevia em seu livro Física quatro paradoxos do movimento de Zenão [1], referenciando o filósofo de Eleia como uma espécie de precursor do método dialético. Neste sentido, entende-se que o paradoxo não é um método propriamente dito, mas sim o que se resulta do método. Segundo Costa [2], o método consistiria, primeiramente, na determinação dos opostos, traduzindo-os em duas hipóteses entre si excludentes e antagônicas, e na posterior análise das consequências de cada uma delas. Esse processo culmina no paradoxo.

Assim como em todos os campos da intelectualidade, os paradoxos também se apresentam no Direito, especialmente em situações que revelam antinomias jurídicas, ou seja, quando duas normas discorrem de forma contraditória sobre uma mesma matéria. Isto ocorre porque nosso ordenamento jurídico é uno e deve ser interpretado como tal, através de um exercício de análise sistemática das normas, exercício esse que demanda que as normas interpretadas estejam em consonância.

Feitas essas considerações iniciais, podemos vislumbrar uma potencial antinomia que decorre da contradição entre as disposições que tratam do conceito de devedor contumaz sugerido no Projeto de Lei n.º 15/2024 (PL 15/2024) e as regras gerais da transação tributária estabelecidas na Lei n.º 13.988/2020.

O PL 15/2024, que atualmente tramita na Comissão de Desenvolvimento Econômico (CDE) da Câmara dos Deputados, tem por finalidade a instituição de programas de conformidade tributária e aduaneira no âmbito da Receita Federal do Brasil, contudo, também dispõe sobre o devedor contumaz e as condições para fruição de benefícios fiscais. Em que pese a importância do PL no que tange aos programas de conformidade fiscal propostos, nossa análise se restringirá ao recorte das disposições atinentes ao conceito de devedor contumaz.

A partir do artigo 30 do PL 15/2024, entende-se como devedor contumaz o sujeito passivo que incidir em quaisquer das seguintes hipóteses:

“I – possuir créditos tributários federais sem garantias idôneas, inscritos ou não em dívida ativa da União, em âmbito administrativo ou judicial, em montante acima de R$ 15.000.000,00 (quinze milhões de reais) e correspondente a mais de cem por cento do patrimônio conhecido, assim considerado o total do ativo informado no último balanço patrimonial registrado na contabilidade, constante da Escrituração Contábil Fiscal – ECF ou da Escrituração Contábil Digital – ECD;

II – possuir créditos tributários federais inscritos em dívida ativa da União, de valor igual ou superior a R$ 15 milhões, em situação irregular por período igual ou superior a um ano; e

III – for parte relacionada de pessoa jurídica baixada ou declarada inapta nos últimos cinco anos, com créditos tributários em situação irregular cujo montante totalize valor igual ou superior a R$ 15 milhões, inscritos ou não em dívida ativa da União.”

Analisando o referido artigo, percebe-se que o redator da proposta optou por estabelecer um conceito de devedor contumaz voltado a critérios quantitativos – e discretamente temporais – do passivo tributário, em detrimento de outros possíveis critérios, como da recorrência da inadimplência. Além disso, importante destacar que os critérios são alternativos, ou seja, basta que o contribuinte se insira em uma das hipóteses para ser classificado como devedor contumaz.

O devedor contumaz e a transação

A primazia do critério quantitativo para definição de um devedor contumaz revela graves falhas que podem dificultar uma interpretação justa da condição de cada contribuinte. Por exemplo: o contribuinte que tenha um faturamento mensal de mais de cem milhões de reais pode se tornar devedor contumaz ao deixar de pagar seus tributos por apenas dois meses, mesmo que todos os meses anteriores tenham sido quitados exemplarmente. Em contrapartida, um contribuinte que tenha um faturamento na casa dos milhares demorará anos para alcançar os R$ 15 milhões de passivo tributário para finalmente ser classificado como devedor contumaz, ainda que nunca pague seus tributos correntes.

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Dinheiro, reais, moedas

Contudo, para além das críticas ao texto em si, acreditamos que o critério quantitativo para definição de devedor contumaz também esbarra naquela que constitui um dos principais pilares da arrecadação tributária e da redução da litigiosidade em âmbito federal atualmente, que é a transação tributária.

Com efeito, a transação tributária é regulamentada pela Lei nº 13.988/2020, que traz em seu artigo 5º, III, uma expressa vedação às transações que envolvam devedores contumazes, conforme conceito a ser definido em lei específica. Em outras palavras, o conceito de devedor contumaz é primordial para que se esclareça quem poderá transacionar seus débitos perante a administração tributária federal.

Ocorre que o instituto da transação tributária, por sua própria essência e teleologia, não comporta a ideia de critérios objetivos quantitativos para delimitação de quem pode ou não transacionar, haja vista que a transação tributária foi desenhada como medida não somente de incremento da arrecadação, mas também como alternativa ao Refis [3], impondo em seu texto a observância do princípio da capacidade contributiva (artigo 1º, § 2º da Lei 13.988/2020), trazendo uma nova perspectiva às políticas estatais de fomento à conformidade tributária. Essa perspectiva se materializa a partir da apuração da capacidade de pagamento de cada contribuinte para fins de conceder descontos aos contribuintes que realmente comprovem necessitar de auxílio adicional para adimplemento de seu passivo tributário.

A transação tributária foi legalmente moldada a pressupor como primordial que haja análise e, quando necessária, revisão subjetiva da capacidade de pagamento de cada contribuinte para adesão aos seus termos, o que não condiz com uma vedação exclusivamente pautada pelo indicador numérico do passivo tributário de um contribuinte.

Indo além, existem modalidades basilares da transação que são frontalmente abaladas pela definição do devedor contumaz como sendo aquele que possui um passivo superior a R$ 15 milhões, por mais de um ano.

É o caso da transação individual prevista no artigo 46 da Portaria PGFN 6757/2022, cuja premissa é atender aos contribuintes cujo passivo tributário for superior a R$ 10 milhões, sendo a única modalidade que possibilita a todos a utilização de créditos de prejuízo fiscal e base de cálculo negativa da CSLL para amortização do saldo transacionado [4]. Estando os contribuintes com passivo superior a R$ 15 milhões impedidos de transacionar, só poderão se valer da transação individual aqueles cujos débitos estejam entre os específicos patamares de R$ 10 a 15 milhões? A transação individual perderá o sentido pela sua própria contradição com o conceito de devedor contumaz.

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Segundo dados disponibilizados pelo Insper em seu 4º Relatório do Observatório de Transações Tributárias [5], a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional logrou a regularização, até 1º de julho de 2022, do montante de R$ 14,6 bilhões, gerando uma arrecadação efetiva, até a referida data, no valor de R$ 916,7 milhões, somente com a transação individual, o que representa o impacto dessa modalidade na arrecadação federal e, em uma perspectiva extrafiscal, a consagração do princípio da capacidade contributiva em relação aos contribuintes que demonstraram efetivamente fazer jus aos descontos concedidos.

Saindo das transações individuais e passando para as transações por adesão, apresenta-se outro paradoxo relativo ao critério temporal do conceito de devedor contumaz, que decorre das recentes alterações à Portaria PGFN nº 6757/2022 trazidas pela Portaria PGFN nº 1457/2024, que passou a determinar em seu artigo 41, §1º, II, A, a vedação de editais que contemplem créditos inscritos há menos de (1) 90 dias, tratando-se de modalidade relativa à cobrança da dívida ativa da União e do FGTS; e (2) um ano, tratando-se de modalidade relativa ao contencioso de pequeno valor no processo de cobrança da dívida ativa da União e do FGTS.

Ora, se para o contribuinte transacionar seus débitos perante a PGFN é necessário que eles estejam inscritos em dívida ativa há mais de um ano — ou pelo menos 90 dias, na hipótese em que especifica — e, paralelamente, haja uma vedação legal para que o devedor contumaz — cujos débitos estão inscritos há mais de um ano — transacione com a PGFN, somente os contribuintes cujos débitos sejam inferiores a R$ 15 milhões, ou superiores inscritos há mais de 90 dias e menos de um ano, poderão transacionar seus débitos [6], limitando demasiadamente a abrangência da transação.

São fatores que denotam haver, a partir da delimitação de opostos (PL 15/2024 e Lei nº 13.988/2022), duas hipóteses entre si excludentes e antagônicas (conceito de devedor contumaz e transação tributária), cujas premissas delineadas neste artigo nos levam a inevitáveis contradições, as quais esperamos que sejam levadas em consideração ao longo da tramitação do PL 15/2024 no Congresso.

 


[1] ARISTOTLE (1996), Physics, trad. R. Waterfield, Oxford U. Press, orig. c. 350 AEC.

[2] COSTA, Alexandre. Zenão de Eleia e o exercício da filosofia através do paradoxo: um ensaio acerca da intenção filosófica da dialéctica zenónica. Revista Filosófica de Coimbra, vol.14, nº 27, março de 2004, p. 205-225.

[3] Exposição de motivos da Medida Provisória n.º 899/2019: “A transação na cobrança da dívida ativa da União acarretará redução do estoque desses créditos, limitados àqueles classificados como irrecuperáveis ou de difícil recuperação, incrementará a arrecadação e esvaziará a prática comprovadamente nociva de criação periódica de parcelamentos especiais, com concessão de prazos e descontos excessivos a todos aqueles que se enquadram na norma (mesmo aqueles com plena capacidade de pagamento integral da dívida)”.

[4] Com exceção dos devedores em recuperação judicial ou extrajudicial, que podem utilizar os referidos créditos na transação por adesão e na transação individual simplificada, conforme parágrafo único do artigo 37 da Portaria PGFN 6757/2024.

[5] Insper. Projeto de Pesquisa: Observatório de Transações Tributárias 4º Relatório, data-base 01.07.2022.

[6] Ainda assim, desde que não incorra nas demais hipóteses de identificação do devedor contumaz.




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